Conto negro'

Derluh Dantas
E tudo que viera de seu passado ancestral, era demonizado por ela. Não tinha a menor ideia de seus avós que morreram tentando defender sua crença, sua cultura, sua fé. Ela fora batizada aos seis anos, aos quinze, dizia que por amor e revelação, se converteu em verdadeira Cristã. Foi-se para outra congregação. Quando menos percebeu, sua pele não era mais negra, seu paladar não era mais rústico. Acarajé era proibido ao menos que mudasse de nome e de mãos que o prepare. Agora ela se tornou uma mulher, chamá-la de negra, dizia que a denegria. Ela era parda, mulher de família e boa Cristã. Ao ver seu irmão de branco toda sexta-feira, orava baixinho que Deus a livrasse do mal e ainda gritava pra ele: “sua vida anda pra trás por adoração a esse demônio negro e Quilombola!” Mal sabe ela que seu pai sangra do lado de fora, e aquele exorcismo que ela pediu ao pastor outro dia, era seu pai tentando pedir perdão aos Orixás, era o toque e seu amor ancestral calado... Afinal de contas, ela só tem saúde e uma história, porque seu pai acreditou em sua crença e a escondeu na mata de seu algoz, que hoje ela chama de pastor amado!

*Qualquer semelhança com a realidade é mera inspiração!

Outra Madalena Cristina'

Derluh Dantas

Eram muitas acusações para uma pessoa suportar em apenas uma vida. Era vadia, puta, promiscua, falsa, dissimulada, preguiçoso, dramático... Pieguices. Se houvesse pedras pelo caminho, muitas seriam lançadas àquela face sem sequer uma gota ínfima de remorso. Havia cansaço em seu olhar e ombros. Olhou-se mais uma vez no espelho, decidiu mudar. Trocou as roupas claras, por diversos tons de cores, uma explosão anunciada em vestes. Mudou sua postura, decidiu estufar o peito aos desafios da vida. Já que sua maior acusação era se deitar em primeiros e muitos encontros, decidiu fazer por onde essa fama de puta. Quanto ao drama que lhe acusavam – que se danem os demais. As lágrimas e dores são suas. Se não querem ouvir Meu lamento ou samba, que tampem os ouvidos, mudem de lugar. Não preciso de batom vermelho, meus lábios já estão por demais rubros de desejo. Não necessito maquiagem, a barba esconde as manchas, meus olhos dissimulam a paz. E esse sou eu, sem culpas ou ‘mas’.

Mexe comigo'


“Eu a havia sentido tão perto durante a noite que sentia o rumor de seu respirar no quarto de dormir, e a pulsação de sua face em meu travesseiro. Só assim entendi que tivéssemos podido fazer tanto em tão pouco tempo. Eu me lembrava de ter subido no escabelo da biblioteca e a recordava desperta com seu vestidinho de flores recebendo os livros para colocá-los a salvo. Via como ela corria de um lado a outro na casa batalhando com a tormenta, empapada de chuva e com água pelos tornozelos. Recordava como preparou no dia seguinte o café da manhã que nunca houve, e que pôs a mesa enquanto secava o chão e punha ordem no naufrágio da casa. Nunca esqueci seu olha sombrio enquanto tomávamos o café da manhã: por que você me conheceu tão velho? Respondi com a verdade: A idade não é a que a gente tem, mas a que a gente sente.” 
(MÁRQUEZ, G. G. Memória de Minhas Putas Tristes. 23ªEd. Rio de Janeiro: Record, 2012. Pg. 68)


- Assim são os fatos sobre o primeiro Amor: 
Nós o sentimos em realidades e lembranças que ainda não tivemos a oportunidade de vivermos para além de nossas emoções e ilusões. E tantas vezes temos saudades de momentos que não existirem para além de um desejo recorrente! 
(De Derluh Dantas, 2013)

Blurred Lines'

Derluh Dantas

A inspiração vai se insinuando como uma vadia sedutora, uma dama, dona de si. As palavras que surgem são abafadas por uma censura insana, medo de parecer demasiado pieguices. Mas, de que importa à alma bandida, ser um tanto mais livre e ridícula? Nada. A honra é só uma mancha contraditória que muitos não entendem bem e adoram sair pelo mundo a dissimulá-la com outros conceitos. Deixo minha domesticação de lado e aquela coisa estranha que chamam de orgulho para anunciar aos ventos que tenho saudades de ti. Vieram lembranças de suas formas, do cheiro absinto que sentia ao ver seus olhos, do seu sorriso. Não era pra ser uma fábula de amor e não é... Pense nessas palavras como uma porta ao infinito, um universo em paralelo a esse que vivo e o admitido desejo proibido de ti. Não precisa olhar para o lado que me encontro, não precisa me ouvir, nem ler essas palavras aqui... Elas são dispensas ao vento, são insinuações proibidas de uma inspiração vadia. Sou eu e as lembranças de tempos que não vivi. Meu corpo se arrepia, os lábios se contorcem, se excitam, formam sorrisos. Eu quero o toque em pele, para além desse afago em alma que sinto. Mas, não é sobre você, não é sobre alguém que exista, ao menos não o conheço ainda. Ou, talvez, não tive a oportunidade de reconhecê-lo. Que inspiração insana, sai, vem... Apossa-se de mim! 

Enfim'


Derluh Dantas

São apenas clichês. As formas, as cores, odores. Tudo parece semelhante ao que foi posto antes. Mas, não se engane, há uma magia única transmutando o familiar em explosão de surpresas, delírios. A estrada escura e o pedido de que aconteça a mudança. Mas, o mundo parece calado e surdo, não parece se importar muito. Abra os olhos e perceba que há algo oculto em todo óbvio ser. As cascas vão se rompendo, você vai se ferindo, quando menos perceber o reflexo no espelho irá parecer um desconhecido. Não é que não seja você, você mudou. Em meio essa mudança, faço um pedido cadente, que não se perca o poder de me surpreender. Assim vou sendo um velho ancião, que parece não perder a alma de criança. Sem valor de bom ou ruim, eu só quero voar um tiquinho mais por aí. Hora de romper essas raízes, sacudir as velhas folhas e permitir que as sementes desvendem o mundo. Perdoem-me os clichês e as reprises, tenho vividos em lugares muito parecidos, sem tantos encontros queridos e assim vou me fazendo para o porvir. Mas, ainda não era bem isso que quero expressar aqui... Em silêncio, deixarei para outra oportunidade a parte que quero que leias de mim.

Minha visita'

Derluh Dantas

Ela chegou segunda. Já era noite e todos pareciam se preparar para dormir, mas ela queria falar de suas aventuras, contar porque andava longe. Em seu vestido leve e as sandálias rasteiras, ainda mantinha aquele frescor que só aquela mulher parecia ter. Ela tecia palavras soltas, difíceis de compreender, contemplava o amor enquanto narrava sua vida. Ela era uma narradora completamente intrínseca a quem quisesse entender. Eu ria apenas pelos cabelos em voo, ainda que não houvesse vento passando pela sala. Aquela mulher parece ter uma magia que a cerca, provavelmente é a mais sincera consorte de Iansã. Ela tem o sorriso aberto, o peito leve, o olhar mais intenso e doce que alguém possa ter. Ela sou eu, minha parte feminina, minha porção mulher. Eu sou essa mulher que me chamo de Cristina, eu sou essa mulher que se vai por vaidades íntimas, mas não é presunção, se quiser dizer. Então, convido aos leitores corajosos e sem juízos de valor, ou que os tenha, não importa o que for, a conhecer um pouco mais desse personagem que sou. Cristina é mulher da vida, é amante, dona-de-casa, é vadia. Cristina, são os tantos gritos que essa falsa moral social tenta calar, tenta ocultar, mas que só faz reacender ainda mais a tentação, a paixão. Vamos, Cristina, eu preciso demais da sua companhia. E se algum falso moralista parecer, se tentarem copular, estuprar, violentar ou calar você, façamos dele um brinquedo roto, que o sofrimento fará transcender. 

Minha Oração’

Derluh Dantas

Peço licença, primeiro à poesia. Após meu pedido à rima, peço permissão ao povo do terreiro, o povo de coração negro. Eu quero pedir bênçãos ao deus de axé, meu pai em devoção. Quero pedir à rainha das águas, à deusa das marés e à que se veste em vermelho, às três irmãs, quero pedir sabedoria e paixão. Peço licença para às almas errantes e às demais, quero usar o dom literário que me faz esse ser abstração. Logunedé, pai de inspiração e intuição, minha alma carece de sua intervenção para continuar. Que nos braços de Oxum eu reencontre aquela minha característica única em amar, reamar, amar. Nas curvas de Iemanjá que eu retorne ao meu direito em ser livre, voar, nadar. Iansã, não me abandone o direito de lutar e conquistar. Eu peço ao povo de Angola, aos filhos de Queto, em Yorubá de alma, eu peço que me inspirem rodar. Eu peço a cada entidade antiga, a toda e sincera magia que o mundo se inspire um tanto mais em amar. Eu vi gente lutando pelo amor-próprio, vi gente defendendo o amor do outro, eu vi gente tentando salvar. Sei que o mundo anda um tormento, sei que a maldade parece estar vencendo, mas ainda temos uns raros amantes da vida para acreditar. Eu desejo a cada fé ou crença, ou mesmo a falta dela, que os humanos se reconectem à vida, como eu pude sentir na magia daquele sorriso e olhar. E assim eu volto a pedir licença mais uma vez, nos permita amar!

Santa Pesquisa: