O passarinho e a Gaiola

Derluh Dantas'
Jurava que a felicidade estava ligada à liberdade, mas há felicidade também em gaiolas, me contou certo dia um pássaro. Segundo o passarinho, isso ocorre pelo fato de manter os pensamentos livres e a alma tranquila, coisas da simplicidade.
Aquele pássaro de penas tão brilhantes, pareceu tão bonito e feliz quanto qualquer outro sujeito solto. Ele me contou, entre um assobio e outro, que isso acontece quando há carinho e amor. Mas, admitiu um tanto tímido, que mesmo sendo feliz na gaiola, ele ainda sonha no dia de ser mais livre e poder voar por aí... Sem se chocar com as palhetas de madeira e podendo fazer ninho no alto de um ipê ou entre os espinhos de uma roseira.

- Da felicidade de ser do Interior -

Em vermelho'

Derluh Dantas
- Então, o que faz aqui com esse vestido decotado e esse batom vermelho?

- Eu quis vir, sair um pouco... Acho que não lhe devo qualquer satisfação de minha presença aqui.

- Não esteja tão certa disso. Eu sou pago para manter a ordem e sua simples presença, perturbou todas essas pessoas do outro lado da rua. Elas não estão acostumadas a ver gente como você por aqui.

- Isso eu já havia percebido. Pessoas que são cinzas e simétricas, chatas (eu diria até) não estão habituadas há belas aves, sujeitos, almas.

- E por que você se acha melhor que elas?

- Não disse que eu era melhor, em momento algum. Mas, algo denuncia que estou em outro patamar, o azedume delas não interfere em meu ser, brilho, jeito. Porém, eles realmente se perturbaram com a simples presença de ‘alguém como eu’ aqui. – Riso alto e debochado.

- Você não tem medo de ser apedrejada ou apanhar, ser detida? Você não tem medo de morrer?

- Tenho medo de tudo que você disse, mas eu não seria a primeira, possivelmente não seria a única. E irei morrer algum dia, como eles também. Mas, não vou viver minha vida fiscalizando o corpo ou o pecado alheio. Eu vim para ter desejos, ser cores, amores, estar hoje aqui de vermelho. Quando eu era pequeno, meu pai me batia querendo que eu me tornasse homem, macho, corajoso. Mas, sempre achei que ser livre é muito melhor e maior que tudo isso. Hoje o senhor me tratou como uma mulher leviana, uma puta de beira de esquina, que amedronta o marasmo da família tradicional e suas mentiras. Amanhã, possivelmente o senhor me ache uma aberração, fica na dúvida se sou homem ou mulher, me chamará de bixa ou algo de menor degrau. Outro dia, você me beijava atrás da mureta da escola, quando eu te parecia um menino e jogávamos bola, apostando quem perdesse chuparia o pau do outro. É, sargento Ricardo, eu sou Cristina essa noite, amanhã posso ser Lilith Latifah e ao seu passado eu sou o Betinho do melhor beijo e pau saboroso.

E aquele homem fardado, de aliança espessa no dedo, empurrou a mulher de vermelho e pediu para que ela o respeitasse e fosse embora, antes que algum colega se aproximasse para ver o enredo. E a mulher que sustentava um sorriso dissimulado, saiu em cima de seu salto trinta e cantou em alto e bom som:


- “I Will Survive!” Eu sou meu dono, sou anjo, demônio e pecado. Eu sou desejo!

Do amor e seu fim'

Derluh Dantas
Possivelmente, eu te amaria mesmo que perdesse a forma que tens agora. Eu te amaria mesmo que você se esquecesse das vírgulas ou confundisse nossa história. Eu te perdoaria por qualquer erro e juntos riríamos de algumas lágrimas que porventura surgissem nas noites que ficássemos longe. Eu me faria desejo à noite e durante o dia, seria uma companhia de passos e sons.

- Será que você me amaria se meu cabelo caísse? Ou se eu ficasse vulneravelmente “qualquer coisa”?

Acho que nosso amor superaria algumas cicatrizes e seríamos cúmplices de alguns devaneios medonhos. O amor nos seria aquele lugar que mesmo com as paredes em ruínas, não seria nem um pouco menos bonito. Seríamos companhia, mesmo que as promessas fossem quebradas e a memória se tornasse arena traiçoeira. Não importariam os títulos, escolaridade, condição financeira, credo ou cor. Nosso amor seria um vômito de arco-íris e uma dança de bolero, um samba, um tango, vermelho. Teríamos silêncio, haveria distância, mas isso não afetaria nem um pouco o desejo, anseio, carinho. Eu te amaria mesmo com as rugas, arrotos, pelos. Se houvesse remela nos olhos, não haveria o constrangimento de limpá-los com a ponta delicada dos dedos. As flatulências seriam nosso ritual secreto e cômico, como aquela velha competição do odor mais intenso debaixo dos lençóis ou no café da manhã. E as guerras de almofadas, comida, travesseiros... As caricias sob o chuveiro. Acho que nosso amor suportaria até o momento senil de algumas ideologias e sonhos fracassados. Perduraria a eternidade do espaço.

Teríamos segredos somente nossos e o politicamente correto seria balela que a gente ouviu dizer. Nosso amor seria a revolução mundial de nossos sorrisos e medos. Não seria perfeito, teríamos brigas de deixar constrangidos os anjos e de fazer reconfigurar almas, tons, melodias. Haveria algumas birras e picuinhas, brincadeiras. E sim, teríamos ciúmes algumas vezes, mas eles seriam apenas o apimentado em alguma sobremesa. Teríamos amigos distintos, compartilhados, do passado e que o relacionamento teceu. Seriamos imperfeitamente nós – você, eu e os dois – enamorados e amantes intensos. Em meio a tudo que pudesse ruir nossos sentimentos, nosso beijo seria mais forte e invencível, ou mágico como aquele abraço nos festejos de dezembro.

Não pense que esse sentimento é incondicional e pra sempre, há uma coisa que faria esse amor morrer, só um detalhe pequeno e devastador como um vírus ruidoso e letal. Não é a traição, ou a mentira descoberta, é algo mais funcional e silencioso. Nosso amor, só se desfaz e morre com essa necessidade de não ser real. Se quiser ficar com outros, pode falar que deseja variar o cardápio dos desejos e me permita, obviamente, o mesmo. Para mim, amar é não necessitar inventar desculpas. Mas, se tiver que mentir, se achar que algo precisa ser remodelado, dissimulado, inventado para ocultar um fato, acho que o nosso amor já deu entrada na fila dos desafortunados da vida, é um prenúncio inexorável de morte. Não precisa desculpar-se, amar é liberdade e sei que os sentimentos podem mudar o tom, mas o caráter não precisa depender disso. Nosso amor seria invencível, apenas se nós dois tivéssemos assumido o papel fundamental dos sentimentos: a Honestidade sobre aquilo que se sente, que não se evita, que se vive. Sendo assim, meu amor morreu em meio às estórias mal contadas, não por elas, mas pela necessidade que achamos que elas tinham de existir. Não pense que há menos amor agora, apenas nosso desencontro com a sinceridade fez com que ele voasse por aí. Acho que a morte é assim, um lugar onde habita saudades, mas não há como refazer os laços. Admito, meu amor morreu, para algum dia, amarmos de verdade.

Santa Pesquisa: