Derluh Dantas
- Venha, filho! Sente aqui na
beira da saia de sua mãe, quero lhe contar um sonho que tive essa noite. E
enquanto conto esse sonho, quero afagar seus cabelos, senti sua respiração.
O menino, que sempre que a mãe
chamava pra prosa se tremia de medo, sentiu doçura e certo pesar na voz daquela
mulher doce e forte ao mesmo tempo. Mulher de muitas rugas e dores, mas que
guardava nos olhos e nos cabelos ainda negros uma energia vivaz, o desejo quase
material pela vida e suas coisas.
- Diga, mãinha!
- Calma, menino. Chegue mais
perto.
Ele meio tremido foi se
aproximando do sofá que a mãe estava sentada numa posição aparente confortável.
Quando ela pousou suas mãos naqueles cabelos desgrenhados, começou um afago
gostoso, que só mãe sabe dá... E começou seu conto:
- Menino, sempre confiei muito
nas coisas que alguns chamam de Deus e eu gosto de chamar da vida. Essa noite
eu sonhei que você sumia dos meus braços ainda bebê e quanto mais eu te
procurava, mas você sumia. Houve um momento que me tomei de desespero, entre soluços,
eu começava a gritar seu nome, mas pareceu que você era quem se escondia. Eu
começava a ficar irritada, quando percebi que cada vez que você se fazia mais
distante, mas era nítido o seu choro, o seu medo, o seu desejo de sumir dos
meus braços. Acordei no meio da noite, supostamente pelo ronco e mal dormir de
seu pai. Ao acordar, fui ao banheiro e passei pela porta do seu quarto e fui
ver seu sono. Percebi que você e sua irmã dormiam tranquilos. Voltei pra cama,
mas o sono já havia sumido. Deitada, olhando a escuridão do quarto, eu percebi
que não era apenas um sonho. Há muito tempo que não conversamos mais, que pouco
sei sobre você. Não sei o que você faz quando some por horas. Não sei mais as músicas
que ouve, os filmes que assiste, não conheço mais o seu passatempo preferido. Fiquei
me perguntando o porquê dessa distância tão grande, se moramos na mesma casa,
somos mãe e filho. Então, lembrei-me de uma conversa que ouvi meio de auto,
entre você e sua irmã. Você disse: “tenho medo que mãinha descubra, ela não me
perdoaria nunca” e vocês perceberam os passos e cessaram a conversa. Aquilo
ficou incomodando alguns dias, acho que o sonho veio daquela conversa.
O menino que já deixava algumas
lágrimas escapulirem dos olhos, tentava disfarçar o soluço. Mas, a mãe
continuou seu conto, tentando não parecer rude, nem assustar aquele adolescente
que agora parecia mais um menino desmamado e com medo.
- Depois do sonho, eu não quis
conversar contigo imediatamente e falar sobre essa conversa que ouvi entre você
e sua irmã. Fiquei feliz por vocês terem segredos juntos e por não estarem
brigando como sempre. Eu fiquei feliz em ver a cumplicidade que sempre cobro de
vocês, essa cumplicidade de amigos, de irmãos. Mas, o sonho me fez lembrar
também do conteúdo da conversa e da fala que eu ouvi. Filho, em que momento
você achou que sua mãe não te perdoaria por qualquer coisa? Eu sempre te digo
que amor de mãe é incondicional, porém pensando muito, acho que dizer apenas
não é suficiente. Em algum momento do meu papel de ser mãe, eu devo ter te
apresentado a falsa visão de juíza. Não é esse meu papel. Mas, refleti muito
sobre minha relação com a minha mãe e lembrei-me dos meus segredos guardados
dela. Sempre temos nossos segredos, principalmente dos nossos pais. Mas, daí
pensar que o seu segredo se revelado me faria te amar menos!? Isso me doeu
profundamente. Eu sei que te apresento expectativas, que eu e seu pai falamos
dos nossos desejos pra vocês, dos nossos planos, mas eu sempre apoiei que você
caminhasse com suas próprias pernas e não vejo nenhuma escolha que você possa
ter feito, fazer-me eu te amar um milímetro menos. Eu não te chamei pra
perguntar ou descobrir seus segredos, mas eu só quero te dizer que eu te amo
muito e não precisa se esconder de mim para você ser quem é, eu sempre vou te
admirar, eu confio em você, te carreguei em meu ventre por nove meses e não é
porque você saiu dele à 14 anos que eu não confiarei ou amarei você.
O menino tentou elaborar algo pra
dizer, mas quando esboçou um som, que pareceu apenas o suspiro de alguém que
havia se esquecido de respirar por alguns segundos, a mãe o interrompeu e
continuou:
- Sim. No meu sonho, eu acordei antes
de conseguir te encontrar e me senti totalmente desolada por não te ter em meus
abraços, ao te ver dormir meu coração ficou mais sereno, mas ainda não
conseguia dormir. Agora aqui, falando contigo, tantas coisas que eu queria que
você soubesse, mas não há nada mais importante pra você saber do que isso: Eu
sou a sua mãe e te amo independente, independente não. Melhor, eu te amo
justamente por quem você tem se tornado a cada dia, por cada escolha, cada
briga que eu vejo você se empenhar, como defende seus ideais e seus amigos
(mesmo eu não gostando e concordando com muitos deles). Eu te admiro e te amo
cada vez mais com os detalhes que você deixa escapar da sua vida, de você. Eu
não sei quais são os seus segredos, ou os que você julga esconder, mas cada
coisinha que você faz, que você escreve, que você expõe para o mundo, mesmo
achando que eu não vejo, eu me orgulho cada vez mais de você e consequentemente
de mim também, eu criei um filho lindo e eduquei um ser humano maravilhoso.
Antes que ela conseguisse
elaborar a continuação de sua fala, o filho se levantou num pulo e abraçou bem
apertado e entre soluços ele disse:
- Mãe, eu só queria a ‘sinhora’ soubesse que te amo muito e que
eu tenho muito medo de decepcionar a ‘sinhora’.
- Oh, meu filho!
- E um dia eu prometo te contar
tudo, tá bom?
A mãe riu com uma malícia no
olhar e disse:
- Tudo bem, meu filho. Mas, só
entenda que mesmo que ache que tenha feito algo que me decepcione ou me fará me
afastar de você, saiba que eu sou sua mãe... O mundo todo pode te julgar ou
punir, ou apontar o quanto você errou, mas eu te carreguei nove meses, eu te
limpei as fezes no meio da noite, eu não durmo enquanto você não chega,
enquanto não veja você respirando aconchegado em seu quarto, mesmo que Deus ou
Diabo venha dizer o quanto você tá errado, eu vou te admirar e lembrar-me de
tudo que passamos até aqui e o quanto eu tenho a agradecer por eu ter sido
escolhida entre milhões pra ser sua mãe. Não precisa ter medo das rugas do meu
rosto, das reclamações de minhas dores ou do quanto pareço velha... Eu sempre
serei cheia de vida enquanto eu ver você e sua irmã respirando e fazendo suas
próprias escolhas.
Nesse momento, os dois já
choravam juntos. A mãe chorava lágrimas de cumplicidade e amor, o menino de
alívio por achar que ainda tinha segredos ou que se fossem descobertos ele não
seria tão punido assim. Ficaram alguns momentos abraçados e a mãe irrompe o som
daquelas tantas emoções com uma ordem:
- Agora vá buscar seu boletim!
...